Papa Francisco morre aos 88 anos e deixa legado transformador

PUBLICIDADE

Morreu na madrugada desta segunda-feira, aos oitenta e oito anos, o Papa Francisco, líder da Igreja Católica e primeiro pontífice latino-americano, jesuíta e argentino a assumir o trono de São Pedro. O falecimento ocorreu às 07h35, no horário de Roma, no Hospital Agostino Gemelli, em decorrência de complicações pulmonares causadas por uma infecção polibacteriana e pneumonia. O anúncio oficial foi feito pelo cardeal Kevin Farrell, Camerlengo da Câmara Apostólica, diretamente da Casa Santa Marta, no Vaticano.

Em sua última aparição pública, na celebração da Páscoa, no domingo, o Papa acenou aos fiéis reunidos na Basílica de São Pedro e, com a voz fraca, desejou “Boa Páscoa”. Era o adeus de um pontífice que, por doze anos, promoveu profundas transformações na estrutura e no discurso da Igreja Católica, enfrentando resistências internas e ganhando admiração em todo o mundo por seu compromisso com os pobres, com a justiça social e com a proteção ambiental.

“Caríssimos irmãos e irmãs, é com profunda tristeza que comunico o falecimento do nosso Santo Padre Francisco. Toda a sua vida foi dedicada ao serviço do Senhor e da sua Igreja. Ele nos ensinou a viver os valores do Evangelho com fidelidade, coragem e amor universal, especialmente em favor dos mais pobres e marginalizados. Com imensa gratidão por seu exemplo de verdadeiro discípulo do Senhor Jesus, encomendamos a alma do Papa Francisco ao infinito amor misericordioso do Deus Uno e Trino”, declarou Farrell.

Nascido Jorge Mario Bergoglio, em Buenos Aires, em 1936, o futuro Papa enfrentou sérios problemas de saúde ainda jovem. Aos 21 anos, foi submetido a uma cirurgia que retirou parte de seu pulmão direito após uma pneumonia grave. A debilidade pulmonar o acompanhou ao longo da vida, agravando-se na velhice, juntamente com quadros de artrose, problemas no quadril e nas costas, que dificultavam sua mobilidade. Em 2021, passou por uma cirurgia intestinal para tratar uma diverticulite, na qual foram retirados 33 centímetros do cólon. Em 2023, outra cirurgia abdominal reforçou os sinais de fragilidade do pontífice, embora, à época, o Vaticano tenha divulgado que o procedimento foi bem-sucedido.

Na última semana, seu estado clínico piorou rapidamente. Internado com dificuldades respiratórias e diagnosticado com pneumonia nos dois pulmões, sofreu uma crise respiratória asmática no sábado anterior à sua morte. Foi submetido a tratamento intensivo com oxigênio e transfusão de sangue, mas não resistiu.

A eleição de Bergoglio para o papado ocorreu em 13 de março de 2013, em meio a uma Igreja abalada por escândalos de pedofilia, denúncias de corrupção financeira no Vaticano e uma crescente perda de fiéis, especialmente nas Américas. Quando surgiu à sacada central da Basílica de São Pedro, após a fumaça branca anunciar sua eleição, saudou a multidão com humor e humildade: “Parece que meus irmãos cardeais foram me buscar quase no fim do mundo”.

Desde os primeiros instantes, Francisco se apresentou como um líder próximo dos excluídos, defensor da simplicidade e das reformas internas. Escolheu o nome Francisco em homenagem ao santo de Assis, símbolo da pobreza e do amor à natureza, deixando claro seu estilo pastoral centrado no serviço e na empatia com os necessitados.

Em seus doze anos de pontificado, promoveu iniciativas de combate à pedofilia, enfrentando a cultura de silêncio que durante décadas encobriu abusos cometidos dentro da Igreja. Em 2021, liderou a mais profunda revisão do Código de Direito Canônico em quatro décadas, incluindo dispositivos que endureceram as penas contra abusadores, prevendo inclusive a expulsão do estado clerical.

Também inovou na abordagem de temas sociais e ambientais. Em 2015, publicou a encíclica “Laudato Si”, voltada à questão ecológica, na qual estabeleceu uma conexão direta entre a destruição do planeta e as desigualdades sociais. O texto foi considerado revolucionário por ambientalistas e influenciou discussões globais, como a Conferência do Clima de Paris (COP-21), no mesmo ano.

O pontificado de Francisco ficou marcado por seu esforço em democratizar a estrutura eclesiástica. Incentivou a realização de sínodos — assembleias de bispos — para discutir temas sensíveis à luz das realidades locais. No Sínodo da Amazônia, em 2019, promoveu o debate sobre a ordenação de homens casados e o papel das mulheres, reconhecendo o protagonismo feminino na condução das comunidades eclesiais na floresta. Embora a ordenação não tenha sido aprovada, o Papa alterou o Código de Direito Canônico para permitir que mulheres leiam as Escrituras e distribuam a comunhão durante as missas.

Na Cúria Romana, o Papa enfrentou resistência de setores conservadores. “Francisco mexeu em estruturas que estavam habituadas a exercer poder sem contestação”, explica o professor Francisco Borba, da PUC-SP. Em sua opinião, o Papa pagou um preço elevado por sua opção pelos pobres e por tratar de temas como desigualdade, meio ambiente e sexualidade. “Foi chamado de comunista, acusado de desrespeitar o Evangelho e de diluir a doutrina da Igreja”, afirma Borba.

Ainda assim, manteve-se firme em sua missão pastoral. Suas declarações sobre homossexuais ganharam repercussão mundial. “Se uma pessoa é gay, procura Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?”, declarou, em 2013. A fala foi emblemática de uma nova abordagem de acolhimento, embora ele tenha mantido a posição tradicional da Igreja sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Francisco também estimulou o debate sobre o papel da mulher na Igreja. Criou uma comissão para estudar a possibilidade de diaconisas, defendeu o protagonismo feminino nas comunidades de base e destacou, em sua última obra, *Vamos sonhar juntos* (2020), que é injusto desconsiderar o trabalho pastoral exercido por mulheres em regiões onde faltam padres. “Dizer que não são verdadeiras líderes por não serem ordenadas é clericalismo e falta de respeito”, escreveu.

Entre os feitos históricos do Papa Francisco, estão suas visitas a mais de cinquenta países, incluindo destinos emblemáticos como o Iraque, onde se tornou o primeiro pontífice a pisar numa nação de maioria xiita. Em Cuba, atuou como mediador na reaproximação diplomática entre Havana e Washington, sendo reconhecido por Barack Obama e Raúl Castro. No México, Chile, Itália e outros países, visitou presídios, denunciou o encarceramento em massa e pediu mais dignidade para os apenados. Também condenou duramente os abusos na guerra na Ucrânia, clamando pela paz em múltiplas ocasiões.

No campo inter-religioso, encontrou-se com o patriarca russo Cirilo I em 2016, o primeiro encontro entre líderes das igrejas católica e ortodoxa em quase mil anos desde o Grande Cisma do Oriente. Buscou ainda reforçar os laços com líderes muçulmanos e judeus, defendendo o diálogo como instrumento de paz em um mundo cada vez mais dividido.

Apesar de todo o protagonismo, Bergoglio sempre se disse avesso à fama. “Sou um casalingo”, dizia, em referência à sua preferência por uma vida discreta. Antes de ser eleito Papa, vivia em um pequeno apartamento em Buenos Aires, cozinhava suas próprias refeições e andava de transporte público. Após assumir o papado, recusou os luxos do Palácio Apostólico e permaneceu residindo na Casa Santa Marta.

Em suas memórias escritas durante a pandemia, Francisco revelou os três episódios que mais moldaram sua vida: a doença pulmonar na juventude, que quase o matou; o exílio acadêmico na Alemanha, nos anos 1980; e o período de reclusão em uma residência jesuíta em Córdoba, entre 1990 e 1992. Nesse último, mergulhou em leituras intensas e concluiu todos os trinta e sete volumes da obra “História dos papas”, de Ludwig von Pastor. “Foi como uma vacina. Ao conhecer a história dos papas, nada na corte do Vaticano me surpreende mais”, registrou.

Além da teologia, Francisco era amante de cultura. Apaixonado por tango e música clássica, torcedor do San Lorenzo, time de futebol de seu país, lia autores como Fiódor Dostoiévski e Jorge Luis Borges. Sua comunicação direta e afável conquistou multidões, sobretudo em países do Sul Global, onde sua figura era vista como a de um Papa comprometido com as causas do povo.

Sua eleição, porém, não foi apenas uma ruptura de estilo. A própria conjuntura da Igreja naquele momento foi singular. A renúncia de Bento XVI em 2013 — a primeira desde o século XV — introduziu a inédita situação de dois papas vivos. Apesar das diferenças de visão entre eles, a convivência foi harmoniosa. Francisco, inclusive, celebrou pessoalmente o funeral de Bento, em 2022, chamando-o de “amigo fiel”.

Mesmo nos momentos mais difíceis, Francisco manteve a serenidade. Em março de 2023, ao completar dez anos de pontificado, agradeceu pelas orações dos fiéis e pediu apenas que continuassem a rezar por ele. Em sua visão, a oração era a maior forma de apoio que um Papa poderia receber. “Obrigado por me acompanharem com suas orações. Por favor, continuem a fazê-lo”, escreveu à época.

Nos últimos meses, Francisco voltou a ser internado mais de uma vez, mas manteve sua agenda pública sempre que possível. Continuava a receber chefes de Estado, celebrar missas e publicar reflexões. Demonstrava disposição, mesmo debilitado, para seguir conduzindo a Igreja por caminhos de transformação. “A reforma da Igreja começa por dentro, com o coração”, costumava dizer.

Agora, com sua morte, o colégio de cardeais será convocado para um novo conclave, a fim de eleger seu sucessor. O legado de Francisco, contudo, está consolidado: um Papa que ousou mudar, acolher, escutar e desafiar estruturas históricas. Um pastor que preferiu os caminhos de terra às trilhas palacianas. Um reformador que acreditava que a Igreja não deveria ser um museu de tradições, mas um hospital de campanha, aberto ao mundo e às feridas da humanidade.

Foto: Osservatore Romano

Mais recentes

PUBLICIDADE

Rolar para cima
× Estamos Online