Automóvel visto como condição de status e poder é raiz de problemas no trânsito, aponta pesquisador


Midiamax

Por Guilherme Cavalcante

São vários os fatores que fazem do trânsito um cenário de mortes: desde uma engenharia de tráfego deficiente à dificuldade de condutores e pedestre de evitarem acidentes. Não foi a toa, portanto, que com os índices de óbito cada vez mais elevados, essa conjuntura chamasse atenção de organizações internacionais, como a ONU (Organização das Nações Unidas) e da OMS (Organização Mundial da Saúde), para a promoção de ações preventivas. Assim surgiu a campanha 'Maio Amarelo', que desde 2007 busca discutir, em nível global, alternativas para a diminuição das mortes decorrentes de acidentes de trânsito. Desde 2011 Campo Grande e Mato Grosso do Sul integram a campanha, dedicando todo o mês de maio a ações preventivas e de educação de condutores e pedestres.

Para tratar sobe o 'Maio Amarelo', o Jornal Midiamax conversou com o psicólogo e pesquisador Renan da Cunha Soares Junior. Coordenador do curso de Psicologia da UCDB (Universidade Católica Dom Bosco), Renan é membro do Conselheiro no Conselho Estadual de Trânsito e atualmente é doutorando em psicologia do trânsito pela UCDB. Na entrevista, o pesquisador comenta os principais pontos da iniciativa e também apresenta os fatores sociais que influenciam as estatísticas de trânsito no Brasil. Confira.

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JORNAL MIDIAMAX - O que motiva a campanha 'Maio Amarelo'?

RENAN DA CUNHA SOARES JUNIOR - Esta já é uma bandeira bastante antiga do mês de maio, porque a OMS (Organização Mundial da Saúde), já desde 2007, tem este mês como o período internacional pela segurança no trânsito, tendo a ONU (Organização das Nações Unidas) como co-realizadora. Além disso, desde 2011 estamos vivendo a ‘Década Mundial pela Segurança no Trânsito’, que promove um debate no qual se discute trânsito porque ele é uma das causas externas que mais mata pessoas no mundo, com características epidemiológicas, ou seja, um problema de saúde pública global. Inclusive já tivemos duas conferências globais de alto nível de segurança de trânsito, sendo uma em Moscou, na Rússia, em 2009, quando foi lançada a campanha da ‘Década’. E outra que discutiu os primeiros cinco anos da ‘década’, em novembro de 2015, em Brasília. A grande meta seria reduzir até 2020 o número de mortes em 50%. Alguns países já conseguiram, mas outros estão no caminho, como é o caso do Brasil.

O ‘Maio Amarelo’ é uma grande ação institucional para promover mudanças de comportamento. Como podemos esperar que essas mudanças sejam promovidas?

De maneira intersetorial, ou seja, mortes nos trânsitos não são apenas problemas de autoridades e do poder público. É uma questão social que tem que ser discutida em profundidade com vários estratos da sociedade. É justamente essa discussão intersetorial que tem baseado as discussões mundo a fora. Tanto é que o ‘Maio Amarelo é’ puxado principalmente pelas organizações não-governamentais, embora o governo também faça suas ações. Mas a gente tem uma ação muito grande da sociedade civil, ou seja, é um problema que é de todo mundo. Só para você ter uma ideia, de cada 10 acidentes, 9 poderiam ser evitados. Então nós temos um problema resolvível que é baseado na adaptação do comportamento humano, como a cautela no uso da velocidade, por exemplo. Quando a pessoa sinaliza a intenção dela no trânsito, ele se expõe menos ao risco. Ou seja, tendo comportamento seguro, o risco dela se envolver em qualquer sinistro vai baixar.

Então a questão tem sido discutida também no campo do comportamento pessoal?

Sim. A gente fala de direção defensiva quando as pessoas se habilitam para a CNH (Carteira Nacional de Habilitação) só que a gente traz isso para outros aspectos, que seria o comportamento defensivo, que vai englobar o ciclista, o pedestre, o motorista... É um amplo leque de finalizações que vai trabalhar esse comportamento seguro dentro do trânsito.

Para além dessa questão comportamental, o poder público também trabalha com ações visando a prevenção de acidentes, tais como a redução dos limites de velocidade até mesmo dentro das cidades. Um exemplo seria a política de redução de velocidade nas marginais em São Paulo, que praticamente zerou o número de mortes na cidade, algo que voltou a crescer quando o limite antigo de velocidade foi restabelecido. Essa é uma tendência mundial?

Sem dúvidas. No mundo todo tem sido estudado essa questão da gestão do limite de velocidade como ação de controle da velocidade como um dos fatores que são de controle e diminuição dos acidentes. A diminuição é algo que tem sido cada vez mais empregado, e não apenas para evitar as mortes, mas para garantir fluidez. Engenheiros de tráfego, por exemplo, nos dizem que quando temos uma velocidade mais baixa, o trânsito flui de uma maneira melhor, já que são necessárias menos paradas e retomadas. E, claro, reduz-se o número de atropelamentos, de colisões, porque a baixa velocidade vai proporcionar ao condutor uma resposta mais rápida diante da iminência do acidente. Quanto mais próxima a velocidade for de 40 km/h, mais fácil conseguimos evitar a colisão. Quanto mais acima disso, maior vai ser a possibilidade de ocorrência do acidente e, consequentemente, do óbito.

Na sua pesquisa de mestrado o senhor estudou o comportamento de risco dos motoristas no trânsito de Campo Grande. O que seriam esses comportamentos de risco?

Eles vão acontecer de duas formas: ou porque o indivíduo tem algo que chamamos de ‘erro’, ou seja, ele captou alguma informação indevida do ambiente e teve um problema no processamento. Por exemplo, uma placa que era de 60 km/h ele entendeu que era de 80 km/h, andou acima da velocidade e a partir daí ele teve um problema por conta disso. Esse seria o ‘erro’, quando o motorista não queria fazer algo de errado, quando ele não quis deliberadamente infringir a lei de trânsito. A outra possibilidade é a ‘violação’, que é o que traz para nós as infrações de trânsito. Ou seja, a pessoa sabe que aquilo é errado e ainda assim tem aquele tipo de comportamento, porque ela acha que é justificável. Aí você tem as ‘violações agressivas’, que nem sempre estão presentes nas leis de trânsito, e tem as ‘violações das leis de trânsito’, que são bem mais claras. Por que a gente fala isso? Por exemplo, nas violações comportamentais, se a pessoa se enerva, com certeza ela tem uma diminuição de reflexo e pode vir a falhar com mais facilidade. No caso da violação ao código de trânsito, a pessoa sabe que aquilo errado, mas tem uma motivação para cometer a infração. Por exemplo: alguém que avança o sinal vermelho porque está atrasada para um compromisso. Não que ela queira prejudicar alguém, mas ela minimiza as consequências da violação que ela pratica.

Existe um componente social que influencia no comportamento de risco?

Importante você perguntar isso. É um componente socioeconômico e cultural. Vamos começar pela formação: a gente não tem uma formação para o trânsito, ao longo da vida, para as pessoas aprenderem a serem pedestres, ciclistas e quando tiverem a idade correta transferirem isso para a condução de uma motocicleta, de um carro e de um caminhão. O que temos no Brasil é uma informação para condutores, que é a instrução que ele recebe quando vai tirar a CNH. Essa é uma das questões e isso acontece porque o automóvel é visto como uma condição de status. Quer dizer, desde que o automóvel surge, no final do Século XIX e começo do Século XX, ele surge como uma máquina de dominação de tempo e de espaço que diferenciava esses estratos. Imagine o seguinte: início do Século XX. Nós tínhamos trens como grandes meios de transportes, mas o vagão do pobre chegava na mesma hora do vagão do rico. Quando surge o automóvel, ele é uma possibilidade, àqueles que tinham dinheiro, de controlar o tempo e dizer quando vai, quando volta, com quem vai... Ele nasce como um instrumento de diferenciação e de status e a gente ainda carrega isso até hoje.

Até mesmo na lógica de funcionamento das cidades, certo?

Sim. As cidades são formatadas para o automóvel, a gente vive essa lógica. Tem muito mais asfalto que ciclovia, calçada e área verde, por exemplo. O que preocupa as pessoas é se tem asfalto, não é nem se a cidade tem calçada. Então a gente vê que nós compramos, como sociedade, essa ideia de que o automóvel é algo positivo. Vai chegando um ponto de virada em que as pessoas procuram a iniciativa individual para fugir do transporte público deficitário e é tanta busca individual para resolver o problema que isso acaba desenvolvendo um problema coletivo, como a falta de espaço para andar de carro. Daí você cai na necessidade de se implantar uma política de rodízios, como aconteceu em São Paulo.

Campo Grande está próximo disso?

Sim, bastante, mas esse fenômeno é observado em toda a América Latina. É a exacerbação da busca individual em detrimento de uma solução coletiva. Em vez da gente discutir transporte público de qualidade e abrangente, as pessoas vão para esse lado do veículo individual que é entendido como status e poder. Quando muita gente acaba buscando isso como uma saída, nós vamos ter inevitavelmente problemas coletivos.


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