‘Quem ama não mata’: o feminicídio e suas vítimas em Mato Grosso do Sul

Dados do MPMS apontam queda nos números, mas brutalidade contra mulheres choca em todo o Estado


Por Midiamax

Montagem Marcos Ermínio / Arquivo Pessoal

O conceito de Feminicídio nasceu para caracterizar a consequência mais grave da violência, a morte. O termo qualifica o assassinato de uma mulher cometido por razões da condição do sexo feminino após, por anos a fio, a Justiça ser saturada de casos envolvendo torturas, espancamentos, estrangulamentos e inúmeras formas de flagelo contra o “sexo frágil”.

De acordo com a Sejusp (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública), foram registrados 32 casos de feminicídio no ano passado. Dezembro ficou no ranking da lista com um total de 5 mortes durante os 31 dias. Outubro foi o único mês que apareceu zerado nas estatísticas. Os mesmos dados apontam que, desde o início deste ano, cinco mulheres foram vítimas de feminicídio no Estado.

Nas últimas décadas a mulher foi vista como inferior na sociedade. Muitas vezes julgada e colocada à prova, a prática da violência contra a mulher resulta em cicatrizes corporais e morais para o resto da vida. Na década de 70, um novo conceito para uma antiga prática libertou o grito de movimentos feministas e deu visibilidade à discriminação e opressão.

O TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul) possui relatórios construídos com bases de dados de acordo com a portaria 15 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que Institui a Política Judiciária Nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres no Poder Judiciário.

Nos últimos 2 anos, de janeiro de 2017 a janeiro de 2019, chegou ao conhecimento do Judiciário 254 casos novos de feminicídios tentados e consumados no Estado. Também no mesmo período de tempo, o Tribunal do Júri proferiu 51 sentenças condenatórias; extinguiu de punibilidade 2 casos por morte do autor e proferiu 1 sentença de impronúncia – quando o réu é absolvido ou o crime prescreve sem condenação. Os dados do TJMS ainda apontam que 86 casos aguardam julgamento.

A Sejusp garante que adotou o termo feminicídio em seus boletins desde a criação da Lei, em 2015. Na categoria dos Crimes Contra a Pessoa, o fato “Feminicídio” foi registrado, conforme o portal do órgão, 63 vezes nos últimos 13 meses em Mato Grosso do Sul. Esses dados saltam para 12.402 casos se filtrado apenas por “Violência Doméstica”.

O Ministério Público do Estado do Mato Grosso do Sul (MPMS), a fim de viabilizar o acesso à informação, criou o “Projeto Menina dos Olhos”. O site traz de forma clara, desde 2015, as estatísticas relacionadas ao crime como localidade, desdobramentos e números de denúncias.

Os dados do órgão apontam queda de feminicídio Estado. O MPMS acompanhou 96 ocorrências registradas em 2016 (30 consumados), 86 em 2017 (29 consumados), e 78 no ano passado (29 consumados).

Os números alarmantes servem para reforçar debates sobre desigualdades de gênero. A cultura machista fomenta a prática de violência contra a mulher nos espaços rotineiros que, a partir de disputas simbólicas, naturaliza hierarquias e mecanismos de subordinação a partir do ponto de vista que existem papéis a serem dominados pela masculinidade.

“Não há como não ficar estarrecido com os inúmeros casos que temos visto nos últimos tempos. São situações absurdas onde uma mulher é morta simplesmente por não querer continuar num relacionamento, por expor seus sentimentos, por dizer basta para a violência que sofre, muitas vezes na presença dos filhos. Muitos homens não aceitam que o mundo mudou, a sociedade mudou, a mulher mudou. Hoje, mais de 50% dos lares brasileiros são geridos por mulheres. Para se livrar desse ambiente nocivo, tanto para a mulher quanto para os filhos, ela tenta se separar, terminar o relacionamento e construir uma vida de paz, mas acaba sendo morta, deixando filhos órfãos cujas vidas serão marcadas para sempre”, lembra Soraya Palermo, vice-presidente da Comissão de Combate à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da OAB-MS (Ordem dos Advogados do Brasil de Mato Grosso do Sul).

A Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul há tempo percebe a necessidade de oferecer às mulheres em situação de violência atendimento qualificado e especializado. Dentro das possibilidades orçamentárias, desde 1999, cria órgãos especializados para atendimento ao grupo considerado vulnerável, que são as vítimas em situação de violência de gênero, independentemente de ser, ou não, no âmbito da violência doméstica.

O Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) da Defensoria atendeu 12.502 mulheres de 2017 até o início de fevereiro de 2019. O órgão atingiu 11.624 pessoas nos projetos extrajudiciais no Estado entre os anos de 2015 a 2018.

“O crime é diferente por si só, por ser um crime de discriminação, cometido contra uma mulher pelo fato dela ser mulher. Nesse sentido, busca-se demonstrar que se trata de um delito de ódio. Essa forma de assassinato não constitui um evento isolado e nem repentino ou inesperado; ao contrário, faz parte de um processo contínuo de violências, cujas raízes misóginas caracterizam o uso de violência extrema. Inclui uma vasta gama de abusos, desde verbais, físicos e sexuais, como o assédio, o estupro e diversas formas de mutilação e barbárie contra a mulher”, explica a coordenadora do Nudem, Edmeiry Silara Broch Festi.

O que diz a Lei

Cerca de 30 anos depois do termo estrelar as elucidações de assassinatos, a Lei de Feminicídio (Lei 13.104/2015) passou a fazer parte do Código Penal como qualificadora do homicídio simples, incluindo na lista de crimes hediondos. O decreto deu peso aos assassinatos praticados contra mulheres em razão de gênero, seja por discriminação à condição de mulher ou por violência doméstica e familiar. A pena é reclusão de 12 a 30 anos.

“A partir de 09 de março de 2015, com o advento da lei, a palavra Feminicídio passou a fazer parte do nosso vocabulário, trazendo ao conhecimento de toda sociedade a seriedade do assunto, as questões legais, direitos e penalidades dos envolvidos. Quando vemos o número alarmante de vítimas de tentativa feminicídio e feminicídio consumado entendemos a necessidade de tornar cada vez mais visível o que ocorre em todo o Brasil, seja para conscientizar a população da realidade nacional ou prevenir esse crime que começa, geralmente, com a violência doméstica e culmina com uma vida ceifada”, explica Soraya A.S. Palermo.

A qualificadora pode ser classificada em três tipos. Feminicídio íntimo: quando há uma relação de afeto ou de parentesco entre a vítima e o agressor; Feminicídio não íntimo: quando não há uma relação, mas o crime é caracterizado por haver violência ou abuso sexual e Feminicídio por conexão: quando uma mulher, na tentativa de intervir, é morta por um homem que desejava assassinar outra.

A criação da Lei, no entanto, não inibiu a ação dos agressores. A afirmativa é feita embasada no crescimento dos números de vítimas de forma generalizada em todo o país.

“Aumentar penas, para mim, não reduz crimes. Nesta seara da violência contra a mulher o que faz com que possa haver a redução desses delitos é a educação para a mudança de comportamentos machistas e misóginos que violam os direitos das mulheres”, ressalta a juíza Jacqueline Machado, coordenadora da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar em MS.

Conforme o Nucem, a notoriedade da Lei ainda não foi suficiente a ponto de ter aplicação de todas as diretrizes implantadas no processo de investigação, instrução do processo judicial e julgamento.

Outro exemplo são as divergências acerca da Legislação. De um lado, a posição conservadora de que a transexual, mesmo realizado mudanças de órgão e documentos, sob o ponto de vista estritamente genético, continua sendo pessoa do sexo masculino. Portanto, a morte de uma mulher transexual não pode ser considerada, em hipótese alguma, feminícidio.

Em contrapartida, uma segunda corrente mais moderna, entende que desde que a transexual tenha realizado a cirurgia de sexo, deve ser tratada de acordo com a sua nova realidade morfológica.

“A liberdade de gênero não deve ser objeto de prova. Assim, para o Nudem, uma transex carrega consigo a condição de mulher com todas as discriminações de gênero aumentadas”, garante Edmeiry.

Diretriz Nacional

Para colaborar com o aprimoramento da investigação policial, do processo judicial e do julgamento das mortes violentas de mulheres, o Governo Federal lançou as Diretrizes Nacionais do Feminicídio cerca de 1 ano após a Lei ser sancionada.

Diferente da investigação de outros crimes, a apuração do feminicídio depende de aspectos de vida pessoal, familiar, afetiva e profissional da vítima e do autor.

O documento indica que todas as investigações policiais devem partir do princípio de que as mortes violentas de mulheres podem ser decorrentes de razões de gênero. Entretanto, não foi assim que a morte da musicista Mayara Amaral foi tratada em um primeiro momento.

Caso Mayara Amaral

Luis Alberto Bastos Barbosa foi preso no dia 26 de julho de 2017 acusado de ter participado do assassinato da musicista Mayara Amaral. Em primeiro momento, o réu foi denunciado pelo crime de latrocínio – roubo seguido de morte – agravado por motivo torpe e ocultação de cadáver, já que o corpo da vítima foi encontrado carbonizado em um matagal.

As contradições, diferentes versões, requintes de crueldade e motivos citados pelo autor após a prisão resultaram em clamor social a respeito da tipificação do crime.

A defesa de Luís Alberto pediu que ele fosse julgado por feminicídio e a Justiça Estadual deferiu o pedido. A estratégia foi usada pelo defensor já que latrocínio tem pena maior que o feminicídio.

Na época, o MPMS recomendou que o processo permanecesse como latrocínio. O debate foi levantado em torno da tipificação do crime por conta do tamanho da pena máxima que pode ser aplicada.

O julgamento do assassino confesso foi adiado duas vezes e agora está marcado para o dia 29 de março. Luis Alberto será julgado por homicídio qualificado por motivo fútil, meio cruel, recurso que dificultou a defesa da vítima, feminicídio, furto e ocultação de cadáver.

Mayara virou símbolo contra o feminicídio após a morte ganhar repercussão internacional. A musicista foi a um encontro amoroso onde acabou morta a marretadas e teve o corpo carbonizado. A história de terror é uma ferida que nunca será cicatrizada na família Amaral.

“Se tirasse a qualificação do feminicídio do caso seria uma outra violência. Uma forma de violência institucional por parte da Lei. A gente está tentando se fortalecer para aguentar esse julgamento que não vai ser fácil. Estamos preparadas sabendo que o advogado dele vai tentar fazer o que todo advogado de um feminicida faz”, ressalta Pauliane Amaral, irmã de Mayara.

A jornalista acredita que o advogado de defesa deve usar de métodos machistas para abrandar a pena do autor.

“Já estamos esperando que ele vá denegrir a imagem da minha irmã, colocar ela como uma pessoa desqualificada. Pintar ela como se fosse uma p**a. E quanto a lei, ainda é jovem. A doutrina ainda está sendo construída pelas práticas. Portanto, cada caso vai construir esses antecedentes para que nos próximos julgamentos a Justiça tenha referência”.

Outro fato questionado pelos familiares é o peso do crime cometido por razões da condição do sexo feminino. “O que mais dói em mim é que a gente, como sociedade, tenha a obrigação de garantir que a vida de uma mulher tenha mais valor do que um bem material. Mas por enquanto a lei mostra o contrário quando ela dá ao latrocínio uma pena maior. (de 20 anos contra 12). A própria lei mostra um machismo extremo.”

O caso da musicista também levanta discussão sobre a inimputabilidade devido ao uso de drogas, outra estratégia usada pelo advogado do assassino confesso.

“Certamente ele (advogado) vai tentar convencer os jurados da inimputabilidade, o que é uma grande invenção. Se fosse assim, todas as pessoas que tem problema com drogas seriam convertidas automaticamente a assassinos. Não é o que acontece. Essa questão de tirar a responsabilidade de uma pessoa por ter cometido um crime tão violento como esse cara cometeu alegando a questão do uso de drogas é inaceitável,” conclui Pauliane.

Pauliane acredita que a pena deve ser mais rigorosa, já que o feminicídio se trata de um crime motivado pelo ódio e não pelo amor.

“Por mais que ele tenha sido preso em flagrante com todos os pertences da minha irmã, vão tentar inverter tudo isso para mostrar que ele é um bom moço. Eu fico chocada. Bandido não tem cara, não tem cor. A questão de gênero precisa ter um peso maior na Lei, a mulher ela é mais indefesa fisicamente. Uma mulher como a minha irmã que foi morta depois de ter relações sexuais, imagino que ela estivesse vulnerável, não teve como se defender. Ela estava ali para um encontro de amor e não para ser morta. Ele tirou toda e qualquer possibilidade de defesa e por quê? Porque ela é mulher. Porque se ele quisesse roubar o carro dela ele faria isso em outra ocasião. Sem a necessidade de matar dessa forma tão cruel. A motivação foi o ódio. O ódio que ele sentia por ela. “


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