Para sociólogo, embates políticos acontecem por falta de debate: 'Não sabemos discordar'


Midiamax

Por Guilherme Cavalcante e Daniele Valentim 

Precisamos entender urgentemente o que está acontecendo no Brasil. Precisamos descobrir porque as discussões calorosas, às vezes regadas a episódios violentos, são atualmente tão presentes sempre que escutamos palavras como 'Dilma, 'PT', 'esquerda', 'direita' e até 'coxinha'. Para ajudar-nos a destrinchar essas questões, o Jornal Midiamax convidou o sociólogo Aparecido Francisco dos Reis, professor da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), que também é coordenador do LEVS (Laborátório de Estudos da Violência, Gênero e Sexualidade). Durante a entrevista, Aparecido comentou fatos históricos que moldaram a democracia brasileira e afirmou que boa parte do cenário em que vivemos explica-se pela quase ausência de debates, mas pela troca de acusações e ofensas. Confira.

Professor Aparecido, precisamos entender o que está acontecendo na política atualmente. Por que as coisas estão assim? De onde vem tanta polarização entre as pessoas? O que é essa onda conservadora? O senhor poderia traçar um panorama para compreendermos melhor a realidade?

Vamos fazer isso em várias partes. Primeiramente, neste momento específico do Brasil, a impressão que eu tenho em relação a política, em relação até à maneira como, de algum modo, a sociedade tem se organizado e pensado, que nós não fizemos ao longo da história as chamadas 'rupturas, aqueles momentos que tem uma tensão muito grande que se leva necessariamente a uma situação de guerra civil. A gente viu isso nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra... Nas grandes nações isso sempre aconteceu. Quer dizer, as situações de ruptura são frequentes, onde os grupos opostos eles se confrontam. Não só o confronto do debate, mas físico, bélico, de guerra, propriamente dito. A Revolução Francesa foi um exemplo disso, a Revolução Inglesa, a Revolução Gloriosa, assim como a Guerra Civil norte-americana...

No Brasil não há nenhum exemplo?

Aqui no Brasil não tivemos essa ruptura, porque em toda a história do Brasil desde a Revolução da Independência, houve conflitos, mas não a ruptura. Nem todas as mudanças foram feitas com a participação ativa da sociedade de modo geral. Mesmo se pegarmos todos os levantes, de todas as revoluções que se pretendiam acontecer na história do Brasil, no século XIX, por exemplo, revoltas populares acabaram sendo sufocadas pelo poder e pelas classes dominantes do país. Nem na independência houve uma ruptura, porque foi um membro da própria família real que faz a Independência de Portugal. A República foi feita por um marechal que era antirrepublicano, e por aí vai. Nós nunca fomos, de fato, para o confronto. A mesma coisa aconteceu com o Golpe Militar, porque na verdade naquele momento específico havia uma elite que não conseguia hegemonia mais sobre a sociedade - uma elite enfraquecida - e ela vai  apelar para as forças militares para finalidade de manter o controle da sociedade. Então, o Golpe é claramente uma forma em que as elites dominantes brasileiras vão se unir para estabelecer um governo de força e combater os opositores na forma mais terrível que a gente possa imaginar. Neste caso mais recente, para que você chegue a esse ponto é necessário uma campanha ideológica, e que aconteceu e foi amplamente promovida na época.

Muita gente abraçou essas ideologias?

Sim. Um pouco antes houve uma caminhada com milhares de pessoas, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Depois, muita gente que participou dessa organização acabou se arrependendo. Um dos casos mais conhecidos é do Dom Hélder Câmara, que era arcebispo e que participou da organização da marcha, mas que depois se arrependeu e fez uma oposição constante ao regime militar. Veja, essa é um exemplo de situação em que os confrontos são sempre sufocados.

Por que isso acontece?

De algum modo, no Brasil, não estamos acostumados à discordância, não sabemos discordar. É tão impressionante que, neste momento específico  da atualidade, em que há muitas controvérsias sobre tudo quanto é assunto, a gente chegou a uma situação na qual qualquer assunto vira uma briga danada e gera uma falsa polêmica. Isso porque, na verdade, não existe um debate de ideias do que possa ser feito. Quais são as ideias melhores e quais são as ideias piores? Não tem isso, não tem um debate para que a gente possa sair disso fortalecido e melhor. O que existem são ofensas, seja de um lado ou do outro.

Isso se aplica ao caso desse episódio da cuspida do deputado Jean Willys (PSOL-RJ)?

Para todos os casos. No caso do Jean Willys, do José de Abreu... Mas o outro lado também ofende, existem ofensas. Numa entrevista da professora Ana Gomes (professora da UFMS que foi presa e torturada durante a ditadura militar) a um jornal de Campo Geande, fui ler os comentários. As pessoas não estavam ali para defender o regime, no sentido racional - se há uma defesa racional para aquilo. Na verdade, os comentários fizeram de ofensas pessoais. As pessoas partiram para esse rumo. Nós vamos discutir política ou nós vamos nos ofender?

Não há debate político, então? Não dá para afirmar que isso seja reflexo de uma onda facista?

Eu não acho que seja assim tão simples. Tem fascistas, mas não acho que as pessoas sejam fascistas. O que existe muito é paixão... Paixão que a gente não sabe muito bem pelo que. Faltam nelas ideias. O que estamos vivenciando nesse momento não é um debate político em torno de ideias, do que é melhor para o país ou do que é pior para o país. Nem o PT, que está aí sofrendo para se manter no poder, e nem o PSDB ou quem quer que seja, nem aqueles que se dizem conservadores. Ninguém tem ideia nenhuma. Não existe uma discussão racional, não existe uma discussão profunda sobre os nossos problemas, que são muitos.

Dá para afirmar, então, que a direita ficou rasa nos argumentos e que a esquerda tornou-se reacionária? O senhor poderia exemplificar?

Ambos são reacionários. Eles não sabem debater! Claro, em outras épocas tínhamos políticos do PSDB que eram intelectuais, não só o ex-presidente Fernando Henrique, mas também outros, como o Bolívar Lamounier, o Leôncio Rodrigues, o José Artur Giannotti... Eram todos intelectuais, que entraram na vida intelectual nos anos 50, do século passado e essas pessoas debatiam ideias, até quando o PSDB foi fundado nos anos 80. O PT tinha sido fundado  um pouco antes, mais por sindicalistas, intelectuais, por membros da igreja católica do lado mais progressista. Poderia ser uma coisa interessante ter dois partidos que pudessem resolver os problemas do país, pois eram partidos com lideranças políticas com ideias e legitimadas por aquela população das quais eles representavam.

O que aconteceu para não dar certo?

Nos anos 90 o PSDB foi muito para a direita e muitos desses intelectuais acabaram abandonando o próprio partido. Isso acabou fazendo um governo interessante sobre certos aspectos, tudo na recuperação da credibilidade do país, junto aos organismos internacionais. Mas, por outro lado, fez a população sofrer muito com as reformas econômicas. Quando o PT estava na oposição era muito bom, também, não só como um partido que sabia fazer as críticas ao governo e discutir as ideias, mas como um partido que também representava  a vanguarda, sobretudo aquilo que a gente chama de direitos humanos, a questão da igualdade, o direito das minorias. Mas essa defesa e essa identificação, com esses movimentos não era suficiente para eleger o Lula presidente, porque ele sempre ficou na faixas dos 27 e 30%.

Certamente. Ele só conseguiu quando fez alianças.

Isso. Ele vai fazer aquela aliança e muda o discurso, mudo tudo e faz uma aliança muito a direita, com o PMDB e com evangélicos - sobretudo com os evangélicos fundamentalistas. Em 2002 houve um jantar em uma churrascaria no Rio, se eu não me engano Churrascaria Porcão, em que Lula reuniu 700 pastores para apoiá-lo. E hoje esses pastores todos, que hoje saíram do governo recentemente, estavam com Lula em 2002. Estavam Silas Malafaia, que é um falastrão; Magno Malta, que é senador até hoje... O Manoel Ferreira, que era presidente da convenção das Assembleias de Deus... O Eduardo Cunha também, pela Sara Nossa Terra... Então, o PT se aliou a isso tudo. Essa gente toda era apoio durante o governo Lula e depois no primeiro mandato da Dilma. Quer dizer, eles foram agraciados com cargos nos mais diferentes lugares, com verbas, foram financiados. Só que a intenção deles sempre foi essa que eles estão fazendo hoje, era uma forma de chegar ao poder. E partir do momento que eles viram que já estavam com poder, numa análise simplista só para resumir a coisa, eles chutaram o governo. É aquela coisa, o PT abraçou essa gente e essa gente depois chutou o governo para fora, ou seja, todos esses deputados que eu citei, hoje se colocam como oposição ao PT e em 2002, 2006, 2010 todos eles estavam abraçados ao PT, na eleição de 2014... Do ano passado, para cá que eles foram saindo do governo, o PP por exemplo, o Bolsonaro era do PP, que era base aliada do PT.

Dada estas informações históricas, é possível afirmar que estamos na iminência de uma ruptura?

Eu acho que não. O conflito está e vai continuar existindo. Conflitos, tensões. Não vejo grandes expectativas do governo Michel Temer se, de fato, o impeachment se confirma. Claro que essa camada conservadora que citei agora tem um poder muito grande, neste momento, e qualquer governo nesse momento vai ter que compor com ele. Ou romper de maneira definitiva, tem que dar um não de maneira definitiva. Mas, o mais provável é que componham juntos.

O afastamento de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) da Câmara não incentivaria essa ruptura?

É uma decisão que pode encorajar, mas não vejo muita expectativa com relação a isso... Até porque o Michel Temer já anuncia escolhas peculiares para seu primeiro escalão, a exemplo do pastor Marcos Pereira, que é da Universal.

E gostaria de abordar um pouco mais de um factual. Recentemente, o vereador de Campo Grande, Roberto Durães (PSC) afirmou que iria homenagear o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) com o título de 'visitante ilustre', devido a uma visita agendada à Capital em maio. Este fato causou polêmica na cidade. Houve campanhas virtuais para impedir a entrega da honraria. Já o Bolsonaro sobrevive de polêmicas, a mais recente foi ter homenageado um militar torturador durante seu discurso na votação do impeachment na Câmara Federal. Para completar, Durães sugeriu, em tribuna, que já conhecia sexualmente a mãe do prefeito de Campo Grande. Quer dizer, os políticos estão tendo deliberadamente posturas incompatíveis com os cargos e não temem punição. Por que que acontece isso? Por que eles estão tão ‘empoderados’ a ponto de acharem que podem dizer o que querem?

Na verdade, essa extrema direita, que a gente chamaria de reacionária demais neste momento, eles se sentem mais ‘empoderados’ ainda e acabaram perdendo, vamos dizer assim, o senso de autocrítica do que pode falar e do que não se pode falar. Acham que podem falar qualquer coisa, uma vez que todos os outros projetos da 'esquerda' deram errados e aí o que acontece: perdeu-se a vergonha. Se o Bolsonaro fala o que fala e não é punido, se o Cunha fez o que fez e para o Supremo afastá-lo foi um 'parto', se não houve punição, todo mundo acha que pode tudo, até vereador.


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